terça-feira, 9 de março de 2010

A era do deboche

O texto abaixo é do jornalista Marcelo Barreto, do Sportv (aquele mesmo com a cara de filho do Renato Aragão, que apresentou o placar da rodada nas férias do Lacombe).
Achei-o simplesmente sensacional e por isso o reproduzo aqui no De Primeira.

Meu projeto de estudo na Universidade de Michigan chamava-se “Do gueto à glória”. Queria ter voltado de lá com algo escrito sobre a trajetória de atletas que saem do nada e passam a ter tudo de uma hora para outra. Minha grande inspiração, na época, era Romário. Do nada – a infância na Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro – ao tudo – a conquista da Copa nos Estados Unidos – tinham se passado apenas 28 anos. Não é nem o tempo de uma vida, e nesse tempo Romário viveu duas vidas completamente diferentes: a de menino pobre, sem esperança, e a de dono do mundo. (Agora vive a terceira, a de ex-dono do mundo.)


Não que a história de Romário fosse nova. Desde que a bola é redonda, o futebol serve de passarela do gueto à glória. É vasta a literatura de jogadores que atingiram o estrelato, e rica a gama de seus destinos: a loucura de Heleno de Freitas, o alcoolismo de Garrincha, as mulheres de Renato Gaúcho, até mesmo o contraponto do sucesso fora de campo de Zagallo. Se alguma novidade havia em Romário, talvez fosse a ostentação – não de sua riqueza, mas de seu status. O Baixinho, eleito rei do mundo, resolveu exercer. Optou por voltar ao Brasil em vez de continuar fazendo fortuna no futebol europeu, não tinha pudor de se exibir jogando futevôlei, não fazia força para esconder seus hábitos noturnos, confrontava os jornalistas com respostas atrevidas… E com tudo isso se tornava cada vez mais ídolo.


É sempre complicado atribuir uma mudança de comportamento a uma pessoa só. Mas, assim como Wanderley Luxemburgo inventou o técnico de terno no futebol brasileiro, Romário inventou o deboche. Sua moeda de troca para fazer o que queria e dizer o que pensava era simples: ou o futebol brasileiro o aceitava assim ou o melhor jogador do mundo caçaria de novo o rumo da Europa.
Tudo isso me voltou à lembrança quando conversei com um dirigente do Flamengo, ontem, sobre Adriano. Com ar conformado, ele me disse: “Quando você contrata o Imperador, compra o pacote completo”. E o combo de Adriano inclui o gueto e a glória. Os amigos que o acompanham desde a infância na Chatuba e a namorada conquistada já como jogador famoso. Não dá para entrar numa concessionária e pedir só o modelo básico de atacante rompedor, sem os opcionais.


O Flamengo sempre soube disso. Com seu Adriano modelo completo, foi campeão brasileiro. E agora lida com o ônus de enfrentar o rancor popular contra seu craque problema. Somos todos moralistas quando falamos de futebol. Para o torcedor, o clube é uma instituição. Essa palavra, usada nesse contexto, sempre me chocou um pouco. Instituição é família, igreja, empresa, partido político… Mas, pensando um pouquinho, para muita gente o futebol passa à frente de tudo isso. Então, exigimos do jogador virtudes de pai, pastor, patrão, presidente.


Mas só instituições fortes conseguem impor seus valores. E os clubes – não só os de futebol, nem só os do Brasil – há muito perderam para os jogadores a batalha pelo poder financeiro (o repasse desse poder aos empresários é tema para outro post). Romário sabia, consciente ou instintivamente, que Flamengo, depois Vasco, depois Fluminense eram reféns de seu talento. Assim como Ronaldo, hoje, desfila sua robusta imagem em campo sabendo que é ela que faz girar a engrenagem do marketing do Corinthians. Estamos vivendo a era do deboche.


Adriano pode não ser particularmente debochado, mas se vale dessa situação. Ao voltar ao Brasil, teoricamente abrindo mão de salários muito maiores no futebol europeu, deixava impostas de antemão suas condições. Já tinha abolido os treinos de segunda-feira e começava a incorporar a manhã de terça quando foi artilheiro do Campeonato Brasileiro. Agora, no meio de mais uma crise, fica para o Flamengo a incumbência de explicar um sumiço temperado a baixaria na favela.



Representantes do clube usam palavras como alcoolismo e depressão – que não são estados de espírito, mas condições clínicas que precisariam ser atestadas por um médico para que pudessem ser consideradas com seriedade.


Este post ficará obsoleto assim que Adriano fizer seu próximo gol com a camisa do Flamengo. Mas a era do deboche não tem data para acabar.

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